Vendido comumente em feiras livres e consumido nas cozinhas do sertão baiano, o licuri, o coquinho típico da caatinga, vem rompendo as fronteiras do semiárido. Há uns quatro anos, ele começou a entrar de forma bastante atrevida no mercado nacional. Graças à força de cooperativas e políticas públicas, o produto passou a ser enaltecido como uma jóia regional e, daqueles artesanais e nostálgicos colares de licuri, tem se apresentado agora como matéria-prima para cerveja gourmet, ingrediente de pratos de restaurantes chiques da Bahia e componente de cosméticos de marca de luxo
Eternizado na frase que corre na boca dos baianos — “eu sou eu e licuri é coco pequeno” —, ele vem mostrando que, a despeito do tamanho, tem grande potencial para estar lado a lado com outras oleaginosas brasileiras, como a castanha-do-Pará e castanha de caju. No entanto, a cadeia de produção ainda requer muita proteção institucional e liga alerta para combate a possíveis novas formas de exploração e bio-espionagem. Continue lendo........
Na culinária, o coquinho se transformou em estrela de pratos como o Dourado com Arroz de Licuri, do renomado chef Fabrício Lemos, do Restaurante Origem, do Camarão com Farofa D’Água de Licuri, da chef Tereza Paim, do Casa de Tereza, e do Escabeche de Tainha sobre Fruta-Pão e Telha de Licuri, do também chef Dudu Prado, do Restaurante Lafayette.
Criadora de uma farofa de licuri que está entre as mais vendidas em shoppings duty-free, Tereza Paim diz que a amêndoa do coquinho tem aura de infância. Nascida no pequeno município de Tanquinho, a chef lembra que, devido ao fato de ser uma comida energética, o licuri é tido como afrodisíaco, tendo sido apelidado de ‘viagra do sertanejo’.
Mulheres quebram licuri na pedra na comunidade do Alto do Capim, em Quixabeira, na região da Bacia do Jacuípe (Foto: Divulgação/Coopes)
Praticamente todas as semanas, a agricultora Rosemeire Santos, 27, sai rumo ao mato com outras mulheres para cortar licuri na comunidade quilombola de Raposa, um povoamento de cerca de 450 habitantes no município de Caldeirão Grande, um dos maiores produtores do coquinho da Bahia. As extrativistas retornam da colheita com cestos nas costas ou na galinhota e levam o licuri para secar nos fundos de suas casas por uma semana ou até 15 dias, a depender da intensidade do sol.
Depois, esse licuri seco é entregue na associação da comunidade. É lá onde todo mundo pode usar as máquinas quebradeira e despeladeira, conquistadas através do projeto Pró-Semiárido, que trouxe uma aliviada na dificuldade ergonômica deste ofício. Após a quebra, cada mulher faz, manualmente, o trabalho de separar a amêndoa da casca.
Tudo é aproveitável: a pele vira ração para o gado no tempo da seca, a dura casca é usada na confecção de bijouterias, a amêndoa é vendida para cooperativas e a palha da palmeira vira matéria-prima para esteiras, vassouras e outros artesanatos. A localidade de Raposa chega a produzir de 500 kg a duas toneladas por semana, segundo Rosemeire.
Os municípios com maior volume de produção de licuri estão no sertão baiano, espalhados pelos territórios da Bacia do Jacuípe, Piemonte da Diamantina, Piemonte Norte do Itapicuru e Sisal. De acordo com dados do projeto estadual Bahia Produtiva, que financia atividades de 14 entidades ligadas à cadeia do licuri, há, ao menos, 526 famílias beneficiadas e 11 municípios onde a produção é forte: Andorinha, Caém, Caldeirão Grande, Campo Formoso, Cansanção, Capim Grosso, Filadélfia, Monte Santo, Pindobaçu, Tucano e Várzea da Roça. Nestes lugares, o litro do produto natural custa, em média, R$ 6, mas pode chegar a valer até R$ 15.
Propriedades nutricionais
A química Djane Santiago, uma das pesquisadoras pioneiras no país sobre as propriedades nutricionais do licuri, revela que esse típico fruto da caatinga é excelente para a alimentação e tem grande contribuição na geração de renda da agricultura familiar. Rica em minerais como cálcio, cobre, magnésio, manganês, selênio e zinco, a amêndoa do coquinho tem ainda mais de 50% de óleo em sua composição e também alguns ácidos graxos, como o láurico e caprílico.
Entre estes componentes, além do óleo que tem vasto uso, o selênio costuma ser tratado com um certo destaque, já que oleaginosas são uma das fontes mais ricas nesse nutriente, que ajuda a prevenir diversos tipos de câncer, deficiências visuais como catarata e tem também benefício anti-inflamatório quando associado à vitamina E. Juntos, estes dois podem aliviar dores de doenças crônicas como artrite reumatóide, lúpus e eczema. O selênio é descrito ainda como um excelente estimulante e antidepressivo.
Mais conhecido, o cálcio tem muita responsabilidade no fortalecimento dos ossos, dentes e no bom funcionamento do sistema nervoso. Já o magnésio tem a função de contribuir para a diminuição de problemas de arritmia, pressão e fadiga. Ele induz o aumento do colesterol bom. Aclamado na pandemia, o zinco é excelente para o tratamento de resfriados, gripe e infecções, além de auxiliar ainda na prevenção de artrite reumatóide, lúpus e na melhora dos níveis de insulina, ajudando no combate à diabetes. O ferro, por sua vez, é o elemento essencial da hemoglobina, molécula que leva oxigênio para os músculos.
“Fora que o licuri é rico em um óleo de boa qualidade porque possui uma cadeia carbônica média, o que quer dizer que ele é facilmente metabolizado pelo corpo, não sobrecarrega o fígado”, argumenta a química, professora do Instituto Federal da Bahia (Ifba).
Com essas propriedades, o licuri poderia facilmente estar nos famosos mix de oleaginosas tão indicados por nutricionistas em dietas de emagrecimento e reeducação alimentar. Djane Santiago adianta que não é possível comparar se uma castanha ou amêndoa é melhor do que outra. Tudo depende da necessidade do organismo de cada pessoa. “O licuri entra nesse rol como mais uma oleaginosa do país. Particularmente, gosto muito mais do gosto dele. Acho mais fácil de consumir e de usar, combina tanto com doce quanto com salgado”, justifica.
Bioprospecção e receitas sob segredo industrial
Ainda segundo a pesquisadora, a Bahia é responsável por mais de 80% da produção de licuri do país. Fora daqui, o fruto também pode ser encontrado nos estados de Alagoas, Sergipe e Pernambuco. Em 2017, ano mais recente do Censo Agropecuário do IBGE, a Bahia produziu 1,7 mil toneladas de amêndoa e 68 t de cera. Apesar de não produzir um grão sequer, a França já detém dois dos oito depósitos de patentes de produtos à base de licuri existentes no país, segundo a base de dados do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). Uma patente também foi registrada no Inpi da França.
Por conta do intenso interesse da indústria farmacêutica e cosmética na biodiversidade nacional, a comunidade científica brasileira tem chamado atenção, desde o começo dos anos 2000, para processos de bioprospecção acontecendo nos biomas do país e vem estruturando políticas de respeito às comunidades tradicionais.
Há dois anos, a subsidiária L'Occitane au Brésil, braço brasileiro da multinacional francesa L'Occitane, lançou uma linha de óleos corporais à base de licuri comprado em cooperativa da Bahia. São dela as duas patentes, inventadas por pesquisadores brasileiros. A empresa seguiu os procedimentos de respeito ao “saber fazer” da comunidade local e o código de conduta para exploração do nosso patrimônio genético, solicitando formalmente amostras dos frutos e óleo produzido pelas mulheres sertanejas, pedindo também autorizações legais aos órgãos para trabalhar junto à cadeia produtiva.
A marca pesquisou os benefícios do óleo de licuri para a pele e levou para as extrativistas cursos de boas práticas de coleta do fruto — informações confirmadas pela cooperativa, a Coopes, de Capim Grosso, que define a L'Occitane como “excelente parceira”. “A história por trás da colheita do ingrediente reflete a cultura de uma comunidade e isso está muito atrelado ao nosso pilar de contar histórias verdadeiras refletindo o respeito pelas pessoas e pela natureza”, diz a empresa, que tem fábricas no Sudeste.
Sudeste.
www.correio24horas.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário